Não existe previsão legal para reconhecimento de Usucapião extrajudicial por sentença arbitral
Publicado em: 03/07/2025
Processo 1062962-62.2025.8.26.0100
Espécie: PROCESSO
Número: 1062962-62.2025.8.26.0100
Processo 1062962-62.2025.8.26.0100 -– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –
Dúvida - Registro de Imóveis - Wilson dos Santos Canhas - Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. - ADV: WALTER LUIZ DIAS GOMES (OAB 169758/SP), WALTER LUIZ DIAS GOMES (OAB 169758/SP), WALTER LUIZ DIAS GOMES (OAB 169758/SP)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo nº: 1062962-62.2025.8.26.0100
Classe - Assunto Dúvida - Registro de Imóveis
Suscitante: 16º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo
Suscitado: Wilson dos Santos Canhas e outros
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pela 16º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Wilson dos Santos Canhas, Tania Regina Pocci Canhas e Moacir dos Santos Canhas, diante de negativa em se proceder ao registro de carta de sentença arbitral emitida pelo pelo IMAT – Instituto de Mediação e Arbitragem do Alto Tietê, sediado em Suzano, que reconheceu a usucapião de imóvel localizado na Rua José Ataliba Ortiz, n. 467, casas 01 e 02, Vila Mangalot, 31º Subdistrito – Pirituba, nesta Capital
A Oficial informa que o registro do título foi recusado, consoante os motivos expostos na nota devolutiva, nos seguintes termos: embora a sentença arbitral possua, em tese, natureza equiparada à judicial (artigo 515, VII, do CPC), o título apresentado contém vícios insanáveis, em especial por dois fundamentos: a) incompetência territorial: o imóvel está situado na Comarca da Capital, o que torna incompetente qualquer procedimento arbitral realizado em comarca diversa, nos termos do artigo 47 do CPC; b) ausência de litígio real: os próprios requerentes declaram que inexiste controvérsia quanto à posse ou a propriedade do imóvel, o que descaracteriza a existência de litígio – requisito essencial à arbitragem; ademais, o verdadeiro titular registral do imóvel não participou do procedimento arbitral, o que compromete a validade e a higidez do título apresentado.
A Oficial destaca que o procedimento de usucapião extrajudicial deve observar estritamente os requisitos estabelecidos nos artigos 398 a 423 do Provimento CNJ n. 149/2023, sendo inadmissível sua substituição por decisão arbitral quando inexistente litígio ou quando ausentes partes essenciais ao contraditório; que a usucapião extrajudicial foi introduzida pelo artigo 1.071 do Código de Processo Civil, que inseriu o artigo 216-A na Lei n. 6.015/1973, posteriormente regulamentada pelo Provimento CNJ n. 65/2017 - hoje revogado e substituído pelo Provimento n. 149/2023, do mesmo Conselho; que, todavia, nenhuma das normas mencionadas autoriza o reconhecimento da usucapião por meio de sentença arbitral (fls. 01/04).
Documentos vieram às fls. 05/197.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada manifestou-se, requerendo o afastamento dos óbices (fls. 169/175 e 206/219). Juntou documentos (fls. 220/221).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice (fls. 225/226).
É o relatório. FUNDAMENTO e DECIDO.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Assim, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117, Cap, XX, das NSCGJ: "Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais".
No mérito, a dúvida é procedente, para manter o óbice. Vejamos os motivos.
No caso concreto, a parte interessada busca o ingresso de carta de sentença arbitral emitida pelo pelo IMAT – Instituto de Mediação e Arbitragem do Alto Tietê, sediado em Suzano, que reconheceu a usucapião de imóvel localizado na Rua José Ataliba Ortiz, n. 467, casas 01 e 02, Vila Mangalot, 31º Subdistrito – Pirituba, nesta Comarca da Capital. Respeitados os argumentos da parte suscitada, assiste razão à Oficial.
A carta de sentença arbitral constitui título executivo, nos termos do artigo 31 da Lei n. 9.307/96, podendo ser apresentada a registro com fulcro no artigo 221, inciso IV, da Lei n. 6.015/73. Essa foi a conclusão do Conselho Nacional de Justiça no pedido de providências n. 0004727-02.2018.2.00.0000 e na consulta n. 0008630-40.2021.2.00.0000, orientada por parecer da Coordenadoria de Gestão de Serviços Notariais e de Registro no âmbito do CNJ.
Mesmo que a carta arbitral equipare-se aos títulos judiciais, não está isenta de qualificação para ingresso no fólio real. Em verdade, o título derivado de sentença proferida por juiz togado também deve atender a requisitos formais próprios de toda carta de sentença para que seja admitido como título hábil ao registro, sujeitando-se à qualificação.
Nesse sentido, o E. Conselho Superior da Magistratura já decidiu que qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Ap. Cível n. 413-6/7). A mesma orientação, na Ap. Cível n. 464-6/9, de São José do Rio Preto:
"Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental".
E, ainda:
"REGISTRO PÚBLICO - ATUAÇÃO DO TITULAR - CARTA DE ADJUDICAÇÃO - DÚVIDA LEVANTADA - CRIME DE DESOBEDIÊNCIA - IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal - crime de desobediência - pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado." (STF, HC 85911 / MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).
Conclui-se, pois, que a origem dos títulos, seja arbitral ou judicial, não basta para garantir ingresso automático no fólio real, cabendo ao Oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.
Nesse contexto, considerando que a interpretação conferida pelo CNJ ao artigo 221, inciso IV, da Lei n. 6.015/1973 é no sentido de que a carta arbitral é título hábil para inscrição independentemente de manifestação do Poder Judiciário, incumbirá ao Registrador a verificação dos requisitos formais e, havendo dúvida acerca de sua autenticidade, poderá devolvê- la, esclarecendo sua motivação e exigindo providências suficientes para contornar a insegurança detectada.
Consoante informativo do E. Conselho Nacional de Justiça "o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, ao analisar o Pedido de Providências n. 0005352-60.2023.2.00.0000 (PP), entendeu que inexiste previsão legal que possibilite realizar o reconhecimento extrajudicial de usucapião por meio de uma sentença arbitral, com a posterior expedição de carta de sentença".[1] (destaque nosso).
O CNJ, em seu Provimento n. 65, de 14/12/2017, estabeleceu diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis, que atualmente são estabelecidos nos estabelecidos nos artigos 398 a 423 do Provimento CNJ n. 149/2023, com fulcro no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, o que, contudo, não se aplica ao procedimento da arbitragem.
Como bem apontado pela Oficial, por força do quadro sistemático representado pelo artigo 47 do Código de Processo Civil, na ação fundada em direito real (notadamente a relacionada com domínio, como é o caso da usucapião) será competente o foro da situação da coisa, com melhor conhecimento da realidade fundiária local.
Veja-se que, no caso do imóvel localizado na Rua José Ataliba Ortiz, n. 467, casas 01 e 02, Vila Mangalot, 31º Subdistrito – Pirituba, nesta Comarca da Capital, sequer é objeto de matrícula ou transcrição, não se sabendo, também por esse motivo, quem são os proprietários tabulares prejudicados e os confrontantes tabulares atingidos, o que não atende os requisitos contidos nos artigos 1º e 20 da Lei n. 9.307/96.
Em caso envolvendo sentença arbitral declarando o domínio pela usucapião, cabe menção ao r. parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria, Dr. Carlos Henrique André Lisboa, aprovado pelo Exmo. Corregedor Geral da Justiça, Dr. Francisco Loureiro, nos autos do Recurso Administrativo n. 1006575-57.2024.8.26.0554, em que destacou o seguinte julgado (destaque nosso):
"PEDIDO DE COOPERAÇÃO - Pedido formulado por Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem de Campinas para que se determine o registro de sentença arbitral de usucapião de imóvel - Inexistência de previsão legal para realizar o reconhecimento extrajudicial de usucapião por meio de Sentença Arbitral, com a posterior expedição de Carta de Sentença - Entendimento do Conselho Nacional de Justiça - Nulidade de pleno direito da sentença arbitral declarando o domínio pela usucapião - Recurso desprovido com determinação de remessa de cópias dos autos à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça para ciência de registros de procedimentos arbitrais de adjudicação compulsória, usucapião e inventário." (TJSP; Apelação Cível 1000201-52.2024.8.26.0642; Relator (a): Alcides Leopoldo; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ubatuba - 3ª Vara; Data do Julgamento: 29/08/2024; Data de Registro: 29/08/2024).
Portanto, mostra-se correta a nota devolutiva apresentada pela Oficial.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 11 de junho de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
Nota:
[1]. Acesso em 11.06.2025 (Acervo INR – DJEN de 12.06.2025 – SP)