PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1007525-42.2022.8.26.0132 Registro: 2023.0000832725 ACÓRDÃO -– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1007525-42.2022.8.26.0132, da Comarca de Catanduva, em que são apelantes GUILHERME ROJAS FERNANDES e RAFAELLA GHANNAGE PEREIRA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE CATANDUVA. ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento, v.u.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 22 de setembro de 2023. FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA Corregedor Geral da Justiça e Relator APELAÇÃO CÍVEL nº 1007525-42.2022.8.26.0132 APELANTES: Guilherme Rojas Fernandes e Rafaella Ghannage Pereira APELADO: 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Catanduva VOTO Nº 39.122 Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura Pública de pacto de convivência em união estável – Regime convencional da separação total de bens – Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o oficial, não comportam ingresso no registro de imóveis porque ilegais – Renúncia à postulação de comunicação patrimonial, embasada na súmula 377 do STF, que apenas reforça a incomunicabilidade de bens na vigência da união estável – Nulidade não configurada – Renúncia ao direito real de habitação – Renúncia também ao direito concorrencial pelos conviventes – Artigo 426 do código civil que veda o pacto sucessório – Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita – Título que, tal como se apresenta, não comporta registro – Apelação não provida.
Trata-se de apelação interposta por Guilherme Rojas Fernandes e Rafaella Ghannage Pereira contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Catanduva/SP, que manteve a negativa de registro de escritura pública de pacto de convivência em união estável (fls. 130/138).
Alegam os apelantes, em síntese, que a referência, no pacto, à não aplicação da Súmula nº 377 do STF se justifica ante a tendência atual de mudança de entendimento por parte dos Tribunais, no sentido de forçar a comunicação patrimonial mesmo em caso de separação convencional de bens. Aduzem que, por não desejarem tal comunicação, manifestaram expressa renúncia no pacto celebrado, que tem por objetivo não apenas eleger o regime patrimonial de bens dos conviventes, mas também fixar sua livre vontade a respeito. Negam que a renúncia ao direito concorrencial possa ser equiparada a um pacto sucessório, à deliberação de herança de pessoa viva ou à renúncia de herança a termo, pois apenas externaram sua vontade de que, no caso de existência de descendentes ou ascendentes, estes herdem a totalidade da herança deixada pelo falecido, honrando o desejo dos conviventes de que o sobrevivente não venha a concorrer com eventuais ascendentes ou descendentes existentes no momento da abertura da sucessão do outro. Acrescentam ser possível a renúncia ao direito de habitação por instrumento público e desde que o convivente confirme seu consentimento depois do óbito do companheiro (fls. 143/151).
A Douta Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls. 178/180). É o relatório.
Os apelantes pretendem fazer registrar, no Livro 3 do Registro de Imóveis, a escritura pública de pacto de convivência em união estável em que convencionado o regime da separação total de bens. O título foi negativamente qualificado pelo registrador, que expediu nota devolutiva (fls. 12/14) nos seguintes termos: “(...) a conclusão de nossa análise é a de que é possível o registro do pacto antenupcial no Livro 3 deste Registro de Imóveis, sem se fazer nenhuma referência, entretanto, às renúncias relacionadas a Sumula 377, direito sucessório/concorrencial e de habitação. Para tanto, todavia, é necessária a concordância expressa do(s) requerente(s). Assim, apresentar declaração firmada pelo(s) requerente(s), com firma reconhecida, manifestando concordância expressa com o registro do pacto e ainda com o fato de que desse mesmo registro não constará nada relacionado às citadas renúncias".
Ao requerer a suscitação de dúvida, os ora apelantes manifestaram expressa concordância em relação ao registro da escritura pública com a exclusão da expressão genérica “renúncia à pretensão sucessória”, aduzindo que o objeto de ambos os conviventes é a “renúncia à concorrência sucessória” com ascendentes ou descendentes do falecido. Insistiram, porém, nas demais cláusulas pactuadas.
Ora, é sabido que a retificação de uma escritura pública somente é possível por meio da lavratura de outra escritura pública. Portanto, não basta que, por ocasião da suscitação da dúvida, haja mera anuência ou mesmo requerimento de exclusão de determinada cláusula pactuada para que, então, o conteúdo do título seja alterado e, por conseguinte, registrado.
Ademais, não é cabível a cindibilidade do título, como sugerido pelo registrador, pois não houve requerimento do apresentante neste sentido (princípio da rogação).
Aliás, o óbice ao registro não está propriamente na impossibilidade de cindir o título e sim, no fato de que os conviventes pactuaram disposições que, segundo o registrador, não podem ser inscritas porque ilegais.
Quanto à cláusula referente à não aplicação da Súmula nº 377 do STF, não assiste razão ao registrador. Com efeito, ao estipularem tal cláusula no pacto em análise, os conviventes sinalizaram que obedecerão à regra da separação de bens e que, no curso da união estável, não haverá incidência dos seus efeitos. Logo, ainda que referida Súmula diga respeito ao regime da separação obrigatória de bens, inexiste nulidade na cláusula que a ela faz referência no intuito de deixar claro que na união estável estabelecida prevalecerá o pacto celebrado, segundo o qual haverá incomunicabilidade absoluta de bens, protegendo o interesse lícito dos conviventes na destinação de seu patrimônio.
É preciso dizer que, em verdade, o ideal seria que o pacto houvesse se limitado a prever o regime de bens estipulado para a união estável estabelecida entre os conviventes, deixando as demais disposições para instrumento diverso que, sem necessidade de ingresso no registro imobiliário, viesse a ser oportunamente analisado por exemplo, quando da abertura do inventário daquele que primeiro vier a falecer, caso ainda esteja, à época, vivendo com o companheiro.
Não sendo assim, bem como porque a inscrição não poderia ser feita como que por resumo, alternativa não há senão confirmar a qualificação negativa do título. É que a despeito de concordarem com a exclusão da expressão genérica “renúncia à pretensão sucessória”, insistem os apelantes na cláusula por meio da qual abdicam ao direito à herança, um do outro, quando em concorrência com descendentes ou ascendentes.
Ora, ainda que permaneçam os apelantes com o direito à herança quando o convivente herdar com exclusividade, ou seja, se não houver descendentes ou ascendentes do falecido, a renúncia à concorrência sucessória esbarra na vedação legal trazida pelo artigo 426 do Código Civil, que impede o pacto sucessório.
Pela mesma razão de direito, é também nula a renúncia ao direito de habitação, uma vez que, em contravenção ao mencionado artigo 426 do Código Civil, se dispôs sobre herança de pessoa viva. Como ensina Pontes de Miranda: “No direito brasileiro, não se admite qualquer contrato sucessório, nem a renúncia a herança. Estatui o Código Civil, art. 1.089: 'Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva'. A regra jurídica, a despeito dos dois termos empregados “contrato” e “herança”, tem de ser entendida como se estivesse escrito: 'Não pode ser objeto de negócio jurídico unilateral, bilateral ou plurilateral a herança ou qualquer elemento da herança de pessoa viva'. Não importa quem seja o outorgante (o de cujo ou o provável herdeiro ou legatário), nem quem seja o outorgado (cônjuge, provável herdeiro ou legatário, ou terceiro). Nas Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 70, § 3, permitiam-se, ex argumento, os pactos chamados renunciativos ou abdicativos (pacta de non succedendo), se sob juramento perante o Tribunal do Desembargo do Paço, mas isso foi revogado pelo costume, confirmado pela não-atribuição de tomada de tal juramento a qualquer-outro órgão estatal.” (Tratado de Direito Privado XXXVIII, § 4.208, 2). “Pactos sucessórios, sucessões pactícias, contratos de herança, sempre se chamaram, no direito brasileiro, como também no próprio direito romano, os pactos aquisitivos, em que algum dos contraentes promete instituir ou se obriga a aceitar sucessão (de sucedendo), e os renunciativos, em que se promete não instituir ou não aceitar (de non succedendo). Esses pactos sempre foram (com ligeiras exceções) considerados nulos. Procurava-se, assim, evitar que os contratos derrogassem regras legais de interesse público, iuris publici, como o é a matéria das sucessões, quod pactis privatorum mutari non potest (L. 38, D., de pactis, 2, 14).” (Tratado de Direito Privado VIII, § 917, 3).
Não se desconhece a controvérsia doutrinária sobre o tema, bem como a existência de alguns julgados em sentido contrário, mas o fato é que, no sistema dos registros públicos, impera o princípio da legalidade estrita, de sorte que, tal como se apresenta, o título não comporta registro.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação. FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA Corregedor Geral da Justiça e Relator (Acervo INR – DJe de 28.11.2023 – SP)